As revoluções de Nicolás Catena

Nicolás Catena
Fotos: Catena Zapata e Luciana Lancellotti

Na região rural de Mendoza, oeste argentino, os caminhos que ligam as vinícolas parecem ser guiados pelas linhas que a cordilheira dos Andes desenha no céu. Se todas têm em comum as montanhas como cenário (cinematográfico), boa parte conta com outro fator em comum: o estilo arquitetônico, nostálgico, com traços coloniais espanhóis ou italianos. Outras, mais recentes, ostentam linhas contemporâneas em edifícios vanguardistas . 

Entre elas, porém, uma construção se destaca ao reproduzir uma pirâmide maia.

As revoluções de Nicolás Catena
Foto Luciana Lancellotti

Não fossem os vinhedos no entorno e a área onde está encravado – Luján de Cuyo, uma das cinco subregiões principais de Mendoza –, associá-lo a uma vinícola não seria uma suposição imediata.

Pois sob aquele teto são produzidos os vinhos Catena Zapata, marca icônica argentina que fez do pioneirismo uma bandeira. E engana-se quem deduz que o estilo arquitetônico, inspirado na cultura mais avançada da América pré-colombiana, foi uma escolha baseada meramente na estética. Trata-se de uma homenagem do produtor ao caráter não europeu e único do terroir mendocino.

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VINHO ARGENTINO: NICOLÁS CATENA

TERROIR

Esse caráter começa pela tipicidade presente no DNA das cepas e dos vinhos locais, especialmente os Malbecs – resultado, em boa parte, dos esforços e, principalmente, da teimosia do argentino de ascendência italiana Nicolás Catena, 77 anos, que, incansável na investigação de melhorias na qualidade de seus vinhos, trabalhou por décadas, desafiando céticos e fechando os ouvidos para críticas. “Até mesmo meus amigos acreditavam que: ou me sobrava dinheiro e eu não me importava com os resultados, ou algo não funcionava bem na minha cabeça”, conta, com bom humor.

Nome mais importante do vinho argentino atualmente, Nicolás Catena esteve no Brasil para a comemoração dos 25 anos de amizade com a família Lilla, proprietária da importadora Mistral, em São Paulo, que traz seus vinhos para o Brasil.

A relação teve início durante a Vinexpo, Paris, em 1993, quando Ciro Lilla conheceu Elena Catena, mulher de Nicolás. Ao provar um copo de Chadonnay, gostou tanto que quis experimentar um tinto. Degustou, então, um Cabernet Sauvignon, e perguntou logo em seguida: “Vocês têm representante no Brasil?”. Ao ouvir a resposta negativa, cravou:  “Então já têm”.

É inimaginável a situação, mas os pontos principais do acordo de importação foi improvisado em um pedaço de papel e até hoje não há contrato assinado entre Mistral e Catena Zapata. “Esse é um dos melhores lados do vinho”, comemora Ciro Lilla. “Ao conhecer as famílias dos produtores, acabamos nos tornando amigos – o mesmo aconteceu com a família do [produtor italiano] Angelo Gaja –, são sonhos que fui realizando”, diz.

A parceria foi comemorada com um jantar no Jockey Club de São Paulo para 200 convidados ligados ao vinho e à gastronomia.

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Horas antes, Catena me concedeu uma entrevista para uma reportagem a ser publicada na revista The President e que reproduzo, adaptada, neste post.

VINHO ARGENTINO: NICOLÁS CATENA

FAMÍLIA 

Elegante e amável, Catena fala pausada e detalhadamente sobre a própria trajetória profissional e pessoal. Mas é quando se refere à família que os olhos transmitem brilho especial. “Agora quero estudar português, porque é a língua que vão falar meus dois netos mais jovens”, comenta, ao se referir aos filhos do genro brasileiro com sua caçula, Adrianna, que hoje vive em Oxford e dá nome a seu vinhedo mais importante. Historiadora, ela estudou os vinhedos mendocinos e resgatou fatos importantes sobre as castas mais antigas plantadas na região argentina pelos imigrantes italianos, como a Malbec e a Petit Verdot.

O olhar de Catena também parece sorrir quando ele se refere à primogênita, Laura, que co-protagoniza a terceira e mais recente revolução da vinícola. O filho do meio, Ernesto, também ingressou no mundo do vinho – é considerado um talento ascendente e produz, atualmente, os vinhos Tikal, elaborados em pequena quantidade.

VINHO ARGENTINO: NICOLÁS CATENA

RUPTURAS

A produção de vinho na Argentina pela família Catena começou no fim do século 19, com a chegada do imigrante italiano Nicola Catena, avô de Nicolás, que em 1902 plantou em Mendoza a primeira vinha de Malbec, até então utilizada em cortes de vinhos bordaleses na França.

Em 1934, seu filho, Domingo Catena, pai de Nicolás, casou-se com Angelica Zapata e assumiu a vinícola familiar, impulsionando a Bodega Catena Zapata.

As revoluções de Nicolás Catena
Domingo Catena e Angelica Zapata | Foto Catena Zapata

Ousou não somente ao apostar na Malbec, mas também ao investir em áreas ainda pouco exploradas, ou mesmo desconhecidas até então, como Agrelo e Luján de Cuyo.  

VINHO ARGENTINO: NICOLÁS CATENA

 PRIMEIRA REVOLUÇÃO

Nicolás acompanhava a rotina da bodega familiar mas se formou economista e viveu em Berkeley com a mulher, Elena, durante alguns meses de 1982, quando ministrou aulas no departamento de economia agrícola na Universidade de Califórnia. Durante um fim de semana, ao visitar uma vinícola no Napa Valley, ele teria um insight que significaria a pólvora detonadora de sua primeira revolução. “Percebi que o vinho deles era muito superior ao que produzíamos na época”, admite. “Decidi retornar e centralizar minhas atenções à nossa vinícola, que então utilizava métodos baseados na escola italiana, algo obviamente herdado de meu avô”.

Em outras palavras, os vinhos  da Bodega Catena Zapata estagiavam por muito tempo em madeira, oxidavam e, embora ganhassem fineza, perdiam o caráter frutado. “No Napa Valley, os produtores também haviam investido no estilo italiano, mas uma década antes”, explica. “Quando estive lá, já estavam seguindo a escola francesa e lembro-me de terem me dito: ‘Catena, não invente, faça o mesmo que os franceses, que produzem o vinho mais caro do mundo atualmente'”, recorda-se.

Pois ele tratou de fazer a fruta aparecer, com toques de tosta, em um exercício para evitar que todos os vinhos apresentassem o mesmo sabor. Garantiu, assim, uma boa dose de autenticidade à bebida.

Dei início a um projeto para fazer o mesmo que os californianos, entrando no mundo da qualidade internacional. Foi uma revolução que permitiu que a Argentina se convertesse em um país exportador de vinho, o que até o momento, não era

Hoje, a Argentina é o décimo maior exportador de vinhos do mundo, de acordo com a OIV – International Organisation of Vine and Wine –, com um volume de exportação de 2.700.000 hectolitros anuais.

VINHO ARGENTINO: NICOLÁS CATENA

SEGUNDA REVOLUÇÃO

A segunda revolução comandada por Nicolás aconteceria no início da década de 1990, quando a Bodega Catena Zapata já havia implementado mudanças tecnológicas e alcançado êxito nas vendas nos mercados norte-americano e britânico.

Certo dia, um produtor francês comparou o sabor dos vinhos Catena Zapata com o dos produzidos no Languedoc. “É uma região francesa não tão prestigiada e eu não queria isso, queria algo semelhante à Borgonha e a Bordeaux“, diz. “Como Languedoc é uma área com temperaturas altas, pensei que o caminho poderia ser buscar áreas mais frias, mas em Mendoza nosso risco nessas regiões era grave: a ocorrência de geadas”, explica.

Nicolás arriscou, então, buscar altitudes ainda maiores, onde a probabilidade de ocorrência de geadas diminuísse. Resolveu plantar a 1,5 mil metros, criando, assim, o vinhedo Adrianna, em Gualtallary, gerando um sem-número de críticas. “Entendo a preocupação geral em torno da minha decisão, mas, veja, até hoje nunca tivemos geada ali”, gaba-se. “Foi uma das melhores resoluções que tomei na vida, porque hoje é neste vinhedo que produzimos nosso melhor Malbec e nosso melhor Chardonnay(veja quadro, ao fim deste post).

VINHO ARGENTINO: NICOLÁS CATENA

TERCEIRA REVOLUÇÃO

O tempo trouxe ainda mais experiência e Catena pôde observar as influências da altitude sobre a qualidade das uvas que, sob maior amplitude térmica, eram cultivadas em condições ideais de maturação. “O que ninguém tinha me dito na Califórnia foi que, para os franceses, a qualidade – sobretudo o sabor e o aroma de um vinho – dependia do que eles chamam de microclima e da composição de determinada área do solo”, comenta. “Nunca soube por que os californianos não perceberam isso na época, o que hoje vem a ser um tema muito importante”.

Certo da relevância do microclima, Nicolás finalmente deu início a uma terceira revolução, ao lado da primogênita, Laura: buscaram setores dentro dos próprios vinhedos que apresentavam diferença na qualidade das vinhas. Bióloga, Laura entendeu que a interação com cada setor traria ainda mais qualidade aos vinhos – cultivadas individualmente, as uvas expressariam maior autenticidade.  

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As revoluções de Nicolás Catena
Laura Catena Foto: Luciana Lancellotti

Laura estudou o solo e trabalhou na identificação dos setores, dando início a um novo processo: a elaboração de vinhos de parcela, desenvolvida a partir da compreensão de cada microterroir e de sua capacidade de proporcionar vinhos de qualidade. “É um tema muito importante, que Laura estuda com afinco”, diz Nicolás. “Ela vive em San Francisco com o marido e os três filhos e vem para a Argentina cerca de seis vezes por ano, anda por todos os lados”, conta, orgulhoso.

E aproveitando a adrenalina das revoluções da família Catena, é natural querer saber do patriarca qual será a próxima. A resposta, em tom espirituoso, vem quase imediata: “Ora, mas eu já disse que é aprender a falar português!”, diverte-se.

 

VINHO ARGENTINO: NICOLÁS CATENA

OS MELHORES VINHOS DE CATENA ZAPATA

Todos são produzidos no vinhedo Adrianna, em Gualtallary, a 1,5 mil metros de altitude, a partir de parcelas únicas

MUNDUS BACILLUS TERRAE MALBEC

As revoluções de Nicolás Catena

Elaborado com uvas cultivadas em uma parcela composta por carbonato de cálcio e fósseis marinhos que cobriam a região há milhões de anos – daí o nome, “elegantes micróbios da terra”. Muito encorpado, com taninos abundantes,  tem passagem de dois anos por carvalho francês.

FORTUNA TERRAE MALBEC

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O nome “sorte da terra” faz referência às videiras sortudas da parcela do vinhedo onde são cultivadas. O frescor resultante da profundidade do solo e da altitude proporcionam ótima acidez e aromas delicados de flores. Um tinto aromático e elegante, com taninos arredondados.

RIVER STONES MALBEC

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Produzido a partir de uma pequena parcela coberta por pedras ovais brancas que pertenceram ao leito de um antigo rio. As pedras abundantes facilitam a ótima drenagem e a adaptação de temperaturas extremas. Extremamente aromático, concentrado e opulento.

WHITE BONES CHARDONNAY

As revoluções de Nicolás Catena
As vinhas são cultivadas em solo aluvial, rico em calcário, e subsolo de pedras redondas, que resultam em um branco exuberante e denso, com notas de mel e damasco, com ótima acidez. A safra de 2009 levou 97 pontos de Robert Parker, nota mais alta concedida pelo crítico a um vinho sul americano.

WHITE STONES CHARDONNAY

 

As revoluções de Nicolás Catena


O nome vem da pequena parcela do vinhedo Adrianna, “Piedras Blancas”, que se refere à composição do solo, com presença abundante de pedras ovais brancas cobertas de cascalhos. Um branco muito complexo, concentrado e aveludado, combinando notas minerais, de mel e de frutos secos.

 

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Jornalista e consultora nas áreas de gastronomia e viagem, não recusa uma taça de um bom Syrah. Editora de Estilo da revista ISTOÉ Dinheiro, foi diretora de redação da revista WINE, crítica de restaurantes da revista Playboy, repórter e apresentadora na Rede Globo São Paulo e TV Cultura.
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