Catena Zapata, Mendoza

O caminho para o distrito de Agrelo, no oeste da Argentina, percorre a típica paisagem árida da região de Mendoza. Por esses lados, o índice pluviométrico é baixíssimo, inferior a 200 milímetros anuais, patamar próximo ao do deserto do Saara. O destino é a Bodega Catena Zapata, vinícola mais importante do país e uma das principais da América do Sul. Ao meu lado, no carro, Laura Catena, representante da quarta geração da família que revolucionou a viniviticultura argentina.

Catena Zapata, Mendoza
A caminho da vinícola Catena Zapata, em Luján de Cuyo. Foto: Luciana Lancellotti

O inverno pálido confere uma incrível elegância ao lugar, que se evidencia em discretas camadas cromáticas, do amarelo-palha ao âmbar. Esses tons também colorem os vastos parreirais do vinhedo La Pirámide, em Luján de Cuyo, onde fica a bela vinícola dos Catenas.

Catena Zapata, Mendoza
Entre os tons pálidos do inverno, a vinícola tem projeto inspirado na arquitetura inca Foto: Luciana Lancellotti

A construção, do final dos anos 1990, reproduz uma pirâmide maia, contrariando o estilo comum a boa parte das vinícolas do mundo, que emulam modelos arquitetônicos italianos ou franceses. A referência à cultura mais avançada da América pré-colombiana homenageia o caráter não europeu e único do terroir mendocino.

Nós descemos do carro para caminhar pelo solo fofo onde estão plantadas as videiras. “Olha só, experimente”, diz Laura ao encontrar um cacho de uvas desidratadas pelo sol. “Não é bom? É um de meus sabores favoritos”, prossegue, sorrindo diante de um dos cenários mais incríveis do planeta: a Cordilheira dos Andes.

Catena Zapata, Mendoza
Laura com o fotógrafo Vitor Affaro. Foto: Luciana Lancellotti

De fato, foram as melhores uvas-passas que provei. Não exatamente pela textura, nesse caso um tanto rígida e rústica, mas pelo gosto doce que se espalhou na boca conforme as sementes estalavam ao mastigá-las. Ainda assim, é provável que o conjunto de recordações acumuladas desde a infância em um sem-número de vinhedos deva tornar aquele sabor ainda mais especial para Laura. Uma espécie de madeleine proustiana, capaz de despertar as memórias de sua vida e de sua família.

A origem de uma revolução
A tradição vitivinícola da família teve início com a chegada do italiano Nicolás Catena à Argentina, no fim do século 19. O bisavô de Laura era, então, um jovem imigrante cheio de sonhos. O primeiro deles se concretizou em 1902, quando plantou, em Mendoza, a primeira vinha de Malbec, até então utilizada nos vinhos de corte de Bordeaux, na França.

Catena Zapata, Mendoza
O imigrante Nicolás Catena com a família. Foto: reprodução

Em 1934, seu filho, Domingo Catena, casou-se com Angelica Zapata, assumindo a empresa familiar e dando forte impulso à Bodega Catena Zapata, que atravessou décadas de êxitos mesclados a fracassos por conta dos períodos turbulentos da economia do país.

Catena Zapata, Mendoza
Angelica Zapata e Domingo Catena Foto: Reprodução

Em 1960, foi a vez do neto, também batizado de Nicolás, se incorporar à empresa. E foi ele, o pai de Laura, quem deu origem, na década de 1980, a uma verdadeira revolução na indústria vitivinícola local, colocando os rótulos e a bebida argentina no mapa e nas taças de enólogos de todo o mundo.

Catena Zapata, Mendoza
Laura com o pai, Nicolás. Foto: reprodução

Para contar essa trajetória, Laura me conduz até a vinícola, onde o ambiente silencioso recepciona quem chega com o sutil e inconfundível perfume de carvalho que evolui a partir das barricas. É ali que começa nossa conversa.

Catena Zapata, Mendoza
Uma das mesas de degustação. Foto: Luciana Lancellotti

“Meu pai conta que minha avó, Angelica Zapata, não sabia preparar um café”, diz. “Em compensação, na década de 1930, ela já era diretora de colégio e uma das coisas que disse a ele, um mês antes de falecer, foi que deveria se tornar físico e conquistar o Prêmio Nobel.”

O tempo passou e o filho não estudou física nem conquistou o Nobel. Mas se tornou PhD em economia, foi cofundador do Centro de Estudos Macroeconômicos da Argentina e implantou, com uma mistura de teimosia e conhecimento, a técnica e o estilo que moldaram a indústria vitivinícola de seu país. Na era pré-Nicolás, o vinho argentino oferecia baixa qualidade, e a marca mais famosa até então, produzida pela Bodegas Esmeralda, destinava sua produção para o mercado interno.

Quando tinha 14 anos, Laura foi morar com a família em Berkeley, onde o pai ministraria um curso de economia como professor visitante na Universidade da Califórnia. Na época, a região na costa oeste americana turbinava sua indústria vitivinícola, numa tentativa de produzir rótulos capazes de rivalizar com o Olimpo dos enólogos: as garrafas francesas.

Nicolás passou a estudar os vinhos do Napa e Sonoma Valley, convencendo-se de que o clima e as terras da região de Mendoza também podiam gerar uma boa bebida. Ao retornar à Argentina, em 1983, estava decidido a implantar vinhedos em grandes altitudes, algo inédito na região. Passou a temporada seguinte descobrindo e explorando o terroir mendocino.
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Catena Zapata, Mendoza
Laura e a paisagem do inverno mendocino. Fotos: Luciana Lancellotti


“Vinhos não são como a medicina”
Por conta das novas ideias, acabou sendo conhecido no meio como um visionário… ou um doido. “Quando meu pai plantou Malbec pela primeira vez em Tupungato, a 1.500 metros de altitude, todos os cientistas disseram que não ia funcionar”, diz Laura. “E ele sempre respondeu que tinha que saber no que ia dar.”

Assim, o que no início parecia loucura, resultou no vinhedo Adrianna, que produz hoje um vinho com excepcional concentração e estrutura, permitindo guarda de 20 a 30 anos. “Vinhos não são como a medicina, que utiliza a ciência precisa”, afirma Laura. “Na viticultura, a investigação mescla ciência, arte e instinto.”

Durante o período que passou com a família na Califórnia, Laura começou a planejar a vida acadêmica. Quando seu pai decidiu retornar a Mendoza, a filha ficou. Acabou aceita em Harvard, aos 17 anos, onde se formaria em biologia. “Foi a parte mais difícil da minha vida – tanto quis ir para longe de casa que quando me vi sozinha, em um lugar tão frio e distante, tive medo.”

Estar ali, com profissionais mais experientes, trouxe um sentimento de desafio. “Percebi como seria difícil me tornar realmente boa em algo.”

A formação em medicina aconteceu no curso universitário seguinte, em Stanford, onde se especializou em emergência. Ainda que a rotina exigisse dedicação intensa, sobrava tempo para degustar vinhos com o pai, que a visitava regularmente nos Estados Unidos.

“Laura me surpreendeu quando começou a degustar vinhos de qualidade internacional”, conta Nicolás. “Sua análise sobre sabor, aromas e qualidade eram opiniões dignas de um expert. Fora isso, seu interesse em descobrir a melhor qualidade entre diversas regiões vitivinícolas do mundo me pareceu realmente fora do comum.”

Catena Zapata, Mendoza
Nicolás e Laura: hábito familiar. Foto: reprodução

Essa busca por um vinho sofisticado e a maneira pela qual se dedicou às degustações e pesquisas da bebida, ainda que a medicina lhe tomasse muito tempo, deixavam claro um traço dos Catena facilmente detectável: a obsessão. “Tem gente que julga essa obsessão como uma doença”, explica Laura.“Mas penso diferente. Acho que para triunfar em algo, seja como médico ou artista, insistir nos detalhes é fundamental.”

A filha de Nicolás despontava como candidata natural a herdar o comando dos negócios da família.

Já como médica residente, Laura, na época com 26 anos, se apaixonou pelo colega norte-americano Daniel McDermott, com quem se casaria. Os dois se mudariam de Los Angeles para San Francisco pouco depois.

Então, a argentina passou a conciliar a carreira na medicina com o comando das exportações dos vinhos Catena para os Estados Unidos. “Ver o meu pai sair pelo mundo, com um vinho no qual ninguém acreditava, provocou em mim o desejo de ajudá-lo”, afirma.

Naquela altura, os nomes Mendoza, Malbec e Catena pouco diziam ao universo do vinho. Foi quando Laura passou a se dividir entre seu terroir e a Califórnia. Estudou o desenvolvimento das diferentes cepas nos vinhedos cultivados em regiões montanhosas – foi ela quem constatou que a mesma variedade de uva, plantada em altitudes diferentes, apresenta perfis aromáticos e parâmetros de qualidade distintos.

“Os vinhos argentinos já foram muito mais rústicos e concentrados”, afirma Manoel Beato, sommelier do grupo Fasano. “Se hoje eles estão mais elegantes, sem dúvida é por influência da Laura, que vem dando continuidade a um trabalho árduo com confiança e tranquilidade, duas de suas características mais marcantes.” Nicolás Catena é definitivo: “Laura é a responsável por levar nossa empresa a uma dimensão internacional”.

Catena Zapata, Mendoza
Detalhes do interior da vinícola. Fotos: Luciana Lancellotti

Ponte aérea
A paixão pela profissão é a mola mestra da rotina intensa de Laura. Uma rotina dividida entre dois países. Durante a colheita, que acontece nos meses de fevereiro e março, ela permanece em Mendoza.

O mesmo acontece em agosto, quando é feito o assemblage – processo que associa vinhos elaborados a partir de diferentes variedades de uvas de uma mesma região.

No restante do ano, Laura visita a vinícola em meses alternados e viaja pelo mundo para participar de eventos e degustações.

Catena Zapata, Mendoza
A partir do prédio da vinícola, a vista dos vinhedos no inverno. Foto: Luciana Lancellotti

A vida com o marido e os três filhos é sediada em San Francisco, onde Laura dedica ao menos cinco dias por mês à ala de emergência do setor pediátrico do California Pacific Medical Center, instituição filiada à Escola de Medicina da Universidade da Califórnia.

“No mundo do vinho as coisas são um tanto incertas e tudo se desenvolve a longo prazo”, afirma. “Mas é no hospital, salvando vidas, que vejo o resultado imediato do meu trabalho e aprendo mais, principalmente com as crianças, que, por incrível que pareça, são mais fortes do que os pais.”

Ainda que a influência direta do pai seja decisiva no trabalho de Laura, a primogênita de Nicolás Catena vem se destacando com uma filosofia muito particular, fato que começou a se evidenciar quando decidiu produzir seus próprios vinhos, utilizando uvas de pequenos produtores dos vinhedos mais antigos de Mendoza.

“Na Bodega Catena Zapata, sempre usamos uvas dos nossos próprios vinhedos”, explica. “Mas eu queria experimentar, conhecer o trabalho e as histórias das famílias produtoras mais antigas da região.”

O resultado dessa investigação deu origem ao rótulo Luca Wines. O nome homenageia o filho mais velho de Laura. Além disso, lançou vinhos com as castas Malbec, Syrah, Chardonnay, Pinot Noir e Beso de Dante.

A tacada foi certeira. Alguns dos varietais (vinhos produzidos com um só tipo de uva) vêm conquistando pontuações superiores a 90 pontos (numa escala que vai até cem) em veículos de referência internacional como o Wine Advocate, um relatório bimestral publicado por Robert Parker, o crítico de vinhos mais influente do mundo.

A revista Wine Spectator chegou a listar o Luca Malbec 2007 entre os top 100 do mundo. “Já faz tempo que o universo do vinho não é mais tão masculino”, explica o jornalista Jorge Lucky, colunista do jornal Valor Econômico. “Laura vem se mostrando muito competente, e a forma como ela comanda e distribui o trabalho é de tirar o chapéu.”

Catena Zapata, Mendoza
Vinhos Catena: entre os melhores da América do Sul

Por mais recorrente que venha se tornando o feito de conquistar altas pontuações e aplausos no mundo do vinho, o sentimento de desafio permanece. “Queremos tanto nos superar que, às vezes, lamentamos não aproveitar os triunfos que conseguimos como manda aquela expressão: ‘smell the roses’, cheirar as rosas, desfrutar do momento.”

Hoje, à frente de 700 funcionários, Laura é convicta quanto ao que chama de Catena Dream. Para ela, trabalhar com um grupo jovem e apaixonado, instigando-o diariamente a elevar a qualidade do vinho argentino, é algo emocionante.

“Quero fazer com que trabalhar aqui seja como estudar em Harvard”, diz. “Algo movido por um fogo interno. O mesmo fogo que me arrepia sempre que volto de fora do país para cá.”

O sonho de Catena.

Matéria publicada na revista Personnalité (Trip Editora).

 

Os agendamentos para visitas à Bodega Catena Zapata podem ser feitos diretamente no site da empresa.

AS MELHORES SAFRAS

Confira uma lista com os cinco principais rótulos produzidos pelos Catenas e dicas de como harmonizá-los

CATENA ALTA MALBEC 2008
(Catena Zapata)

Catena Zapata, MendozaEleito um dos cem melhores vinhos do mundo por três anos consecutivos pela conceituada revista norte-americana Wine Spectator, este vinho, intenso e elegante, é considerado o melhor Malbec produzido por Catena Zapata. A ótima complexidade é raramente encontrada na América do Sul. Harmoniza muito bem com carnes grelhadas.

ANGELICA ZAPATA CHARDONNAY 2009
(Catena Zapata)

Catena Zapata, Mendoza

Elaborado para o mercado interno argentino a partir das uvas do vinhedo Adrianna, a 1.500 metros de altitude. Tido como o melhor branco do país, é potente e concentrado, com textura macia e leve toque amanteigado. Uma ótima companhia para peixes, frutos do mar e bacalhau.

BESO DE DANTE 2009
(Luca, Laura Catena)

Catena Zapata, Mendoza

Grande tinto argentino, recebeu 94 pontos da Wine Advocate. Resultado de um corte de Malbec (50%), Cabernet Sauvignon (40%) e Cabernet Franc (10%), é um vinho elegante, com buquê de ervas, frutas pretas e especiarias. Acompanha bem carnes elaboradas e cordeiro.

CATENA ALTA CABERNET SAUVIGNON 2007
(Catena Zapata)

Catena Zapata, Mendoza

Encorpado e potente, é provavelmente o melhor Cabernet Sauvignon argentino. Um vinho elegante e equilibrado, produzido apenas em anos excepcionais, com sugestão de guarda superior a dez anos. Para acompanhar carnes grelhadas e cordeiro.

LUCA CHARDONNAY 2009
(Luca, Laura Catena)
Catena Zapata, Mendoza

Com grande complexidade, vem recebendo consecutiva-mente 92 pontos da Wine Advocate. Passa por 12 meses de maturação em barricas de carvalho francês novo e apresenta notas aromáticas de maçãs, peras e especiarias. Proporciona ótima harmonização com frutos do mar e peixes grelhados. Confira o valor atualizado do vinho Luca Chardonnay.

LIVRO MAPEIA O VINHO ARGENTINO

Catena Zapata, MendozaEm Vinho argentino (208 págs.,VMF Martins Fontes), Laura Catena faz um mergulho nas principais regiões viniviticultoras de seu país – Mendoza, Salta e Patagônia.

A autora reuniu informações ao longo de 15 anos e o resultado, mais do que um documento com belas fotos, paisagens, personagens, pratos típicos e vinhedos, é um verdadeiro guia de viagem para quem pretende desbravar as vinícolas portenhas.

Lançado na 22ª edição da Bienal Internacional do Livro, em São Paulo, o livro traz ainda um capítulo dedicado à capital, Buenos Aires, com dicas de restaurantes, cafés e shows de tango, além de um glossário com termos de enologia.

A edição em inglês, lançada em 2010, recebeu indicações de veículos como os jornais The New York Times e Washington Post e as revistas Decanter e Wine Spectator.

 


Saiba um pouco mais sobre o trabalho de Laura Catena à frente da vinícola famliar, neste vídeo produzido pela revista Wine Spectator

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Catena Zapata, Mendoza
Jornalista e consultora nas áreas de gastronomia e viagem, não recusa uma taça de um bom Syrah. Editora de Estilo da revista ISTOÉ Dinheiro, foi diretora de redação da revista WINE, crítica de restaurantes da revista Playboy, repórter e apresentadora na Rede Globo São Paulo e TV Cultura.
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