Hôtel Lutetia, Paris

Hotel Lutetia

Tenho o prazer de informá-la de que ficará hospedada em uma de nossas suítes mais especiais, mademoiselle.” E, abrindo um sorriso cortês, o recepcionista me entrega a chave daquele que será meu feliz habitat durante essa estada na capital francesa: uma suíte do Lutetia, no coração de Saint-Germain-des-Prés, no 6º arrondissement.

Por Luciana Lancellotti

Esse lugar histórico pertence a uma categoria de hotéis parisienses de luxo que remontam aos primórdios do século passado – em 2010 o Lutetia comemorou seu centenário. Mas, se boa parte desses hotéis exibe uma sofisticação que pode se tornar até constrangedora, aqui, apesar do luxo aparente, não percebo nenhum sinal de arrogância entre os frequentadores ou os funcionários.

Fica claro, já no lobby, que o Lutetia não é lugar para afetações. Parte da magia desta casa que traz Paris no próprio nome (Lutetia é como a cidade era chamada sob o domínio do império romano) reside em que, como se lê no prefácio do livro que celebra seus 100 anos, ali tudo converge para conferir, a um espaço muito público, um estilo muito privado.

A caminho do elevador, lanço o olhar sobre o amplo bar, frequentado por amantes do jazz. O lugar é uma espécie de reflexo da Belle Époque, com sua suntuosa decoração Art Nouveau,  estilo predominante neste hotel que transpira, acima de tudo, a própria aura de Paris. Destacam-se na suave iluminação vistosos chandeliers de cristal Lalique, detalhes em ferro forjado, cortinas e poltronas em veludo vermelho estampado com desenhos de linhas curvas e geométricas.

O charme nostálgico do lugar envolve parisienses e estrangeiros, executivos e turistas, casais e pessoas desacompanhas, num movimento permanente.

Museu de arte
Volto a prestar atenção ao hall de entrada, um verdadeiro museu a solicitar olhos atentos e sensibilidade apurada. E ainda que eu esteja ávida por subir correndo para minha suíte e descobrir os encantos que me aguardam lá em cima, dou mais alguns passos até ficar de frente com Gustave, uma escultura de dois metros de altura assinada pelo célebre artista plástico francês César, morto em 1998.

A peça foi criada em homenagem a Gustave Eiffel, o construtor da torre que se transformou no mais adorável dos clichês parisienses e para onde, aliás, boa parte das janelas do hotel se debruça.

Numa sucessão de descobertas, é só caminhar um pouco pelas áreas comuns para começar a conhecer a extensa coleção de arte do Lutetia, que chega a quase 300 peças entre pinturas e esculturas. Todas foram presenteadas ao hotel pelos respectivos autores que, como César, dele se aproximaram como residentes, hóspedes ou frequentadores assíduos. É instigante imaginar que por esses corredores passaram grandes artistas como  Pablo Picasso, Henri Matisse, Antoine de Saint-Exupéry, James Joyce, Samuel Beckett, Josephine Baker,  André Gide, Ernest Hemingway, Gertrude Stein e circulam ainda, entre muitas outras personalidades, figuras notáveis como Pierre Bergé, o companheiro de vida de Yves Saint-Laurent e co-fundador de sua célebre maison ou o filósofo Jacques Derrida.

Foi aqui, também, que o Tratado de Paz do Vietnã foi negociado, Charles De Gaulle teve sua noite de núpcias e Jean Paul Sartre fez as pazes com Raymond Aron, após um período de três décadas. E quem consegue ficar indiferente?

É curioso perceber que esse flair, esse ar de história, pontua os ambientes do Lutetia só até certo ponto. Isso fica evidente no momento em que chego à minha suíte e descubro que lá irei dormir e despertar cercada por trabalhos contemporâneos reverenciados mundo afora. Peças assinadas pelo artista plástico brasileiro Vik Muniz, radicado em Nova York e habitué do Lutetia, encontram-se distribuídas por espaçosos 60 metros quadrados, graças a uma parceria realizada entre o hotel e a Maison Européenne de la Photographie.

É quase uma exposição exclusiva e permanente – somente eu, ainda que por poucos dias, poderei contemplar, entre vários outros trabalhos de Vik.

Entre os destaques estão retratos famosos como o de Brigitte Bardot, criado com diamantes, o de Mona Lisa, obtido a partir da montagem de um quebra-cabeças ou o de Marilyn Monroe, feito com chocolates.

Assim como a suíte Vik Muniz, onde estou, há outras três rotonde suítes, situadas estrategicamente no ângulo de curva do edifício (o Lutetia está localizado em uma esquina). Todas foram reformadas em 2009 e decoradas com peças assinadas por outros artistas também consagrados internacionalmente, como o americano Elliott Erwitt, o japonês Keiichi Tahara e o italiano Mimmo Jodice. O melhor da festa: é só esticar o olhar para perceber que a janela emoldura uma parte da torre, linda e altiva, a se deixar docilmente ser observada.

Arredores
Lá fora se pode mergulhar no autêntico espírito da Rive Gauche, um blend de elegância e despojamento que se distingue dos locais tomados pelo turismo ostensivo em Paris.

O Lutetia fica próximo do Jardim de Luxemburgo e do Museu d’Orsay, cercado por lojas charmosas, livrarias, restaurantes, bistrôs e cafés – entre eles os festejados Deux Magots e Café de Flore, sempre lotados, em esquinas vizinhas. Logo em frente fica Le Bon Marché, tradicional loja de departamentos que concentra um número considerável de grifes internacionais das mais cobiçadas, bem como um supermercado de sonho, a Grande Épicerie de Paris, uma verdadeira Disneylândia para qualquer gourmet que se preze.

É bom lembrar, aliás, que foi graças ao Bon Marché que o Lutetia nasceu. O hotel foi idealizado e construído pelos proprietários da loja de departamentos para hospedar, com todo glamour, os compradores que chegavam de fora de Paris, ávidos por gastar. A fachada imponente, adornada por esculturas, ganhou formas que remetem a um  transatlântico, parecendo avançar sobre o Boulevard Raspail, a rua do  hotel. Seu interior, por sinal, recebeu mobília e utilitários fornecidos pelo Bon Marché, além de cristais Baccarat e porcelanas com o aval da Haviland.

Esse período de elegância e luxo que cercou sua inauguração, no entanto, foi breve, logo interropido pela Primeira Grande Guerra, quando o edifício passou a fazer as vezes de hospital. Vieram depois os feéricos anos 1920, com momentos áureos embalados por champanhe e música.

Mas com a Segunda Guerra o Lutetia voltou a ser solicitado, dessa vez pelas tropas invasoras, transformando-se em um QG alemão. Nessa época, a adega do hotel chegou a ser murada, numa tentativa de evitar que seus melhores vinhos fossem roubados. Ironias à parte, o trabalho foi tão bem realizado que consta que até hoje não se sabe onde elas estão… Com tantas histórias ao longo de um século inteiro, o clima no Lutetia é de pura celebração neste ano de seu centenário. Desde o início de 2010 vêm sendo realizados ali uma série de eventos, como exposições de fotografia e apresentações musicais. Também foram lançados selos e velas comemorativos, além de uma edição especial de um vintage produzido pela Taittinger Champagne e, claro, do belo livro com a história do Lutetia, editado em inglês e francês.

Bruni e Depardieu
“Viu quem acabou de sair?”, pergunta Jean-Luc Jean, chief concierge do Lutetia. À minha negativa, ele logo rebate: “Gerard Depardieu!”. Jean-Luc me conta que o ator francês sempre passa ali para dar um alô. “Mas dessa vez você perdeu”, ri, com ar maroto. Funcionário do hotel há quarenta anos, ele enumera muitas outras personalidades que já passaram por aqui e deixa escapar sua predileção pelas presenças femininas mais recentes. Os olhos brilham quando menciona, por exemplo, Catherine Deneuve e Isabelle Adjani, ou a cantora e primeira dama Carla Bruni, que elege o hotel para um chá quando quer desfrutar de momentos de paz.

Sobre os arredores, ele não titubeia ao indicar os restaurantes Ze Kitchen Galerie, do chef William Ledeuil, à beira do Sena, e Alcazar, uma espécie de brasserie chic onde já funcionou um cabaré. Sem contar, claro, os restaurantes do próprio hotel: a Brasserie Lutetia, informal e frequentada por parisienses, tem cardápio que destaca frutos do mar e especialidades regionais.

Um dos restaurantes locais, Paris, pequeno e elegante, ostenta uma estrela Michelin e traz menu com pratos da cozinha francesa contemporânea.

Ao fim da entrevista, pergunto a Jean-Luc se depois de tanto tempo trabalhando aqui ele pensa em se aposentar. A resposta, negativa, se completa com o que poderia resumir o verdadeiro espírito do Lutetia: “Nesse tempo todo, nada mudou. E eu continuo jovem”.

MUDANÇA DE GUARDA
O clima festivo do ano do centenário e a certeza do chief concierge, Jean-Luc Jean, de que nada mudou nos quarenta anos em que ele trabalha no Lutetia não impediram que uma grande transformação se tivesse operado nos bastidores financeiros do hotel no último mês de agosto.

Numa operação em que o valor não foi revelado (mas que notícias anteriores, já em maio, estimavam em 150 milhões de euros), o grupo imobiliário israelense Alrov adquiriu o Lutetia de seu proprietário anterior, o Louvre Hôtels, o segundo maior europeu do ramo hoteleiro. Por sua vez, o Louvre Hôtels pertence ao fundo americano Starwood Capital, formado em 1991 e que, acumulando atualmente uma dívida de 1,6 bilhão de euros, adotou a estratégia de desfazer-se de seu braço de hotelaria de luxo (que inclui também, em Paris, os famosos hotéis Crillon e Concorde Lafayette), para concentrar-se apenas na hotelaria econômica (Kyriad,  CampanilePremière Classe).

Diga-se que o Louvre Hôtels só adquiriu sua última stake no Lutetia em 2004, o que comprova que uma nova mudança de donos não deve afetar a glória centenária do belo hotel.

O único grande palácio da Rive Gauche e um dos emblemas do patrimônio nacional francês deve até, segundo comentaristas da imprensa francesa, receber investimentos que deixarão seus 231 quartos e suítes ainda mais dignos do prestígio que carregam.

Entre os 240 funcionários do hotel, de acordo com as mesmas fontes, o clima era de traquilidade diante da venda e ninguém se sentia ameaçado de demissão.

A compra do Lutetia por um grupo israelense tem também forte valor simbólico, já que o hotel, depois de sombria passagem como reduto de oficiais nazistas durante a ocupação da França, tornou-se também, ao fim da guerra, um abrigo para os judeus que acabavam de ser libertados dos campos de concentração.

 Fundado em 1978, o grupo Alrov, cotado na bolsa de Tel-Aviv, possui negócios na área de imóveis comerciais e vem crescendo na hotelarioa de luxo. Entre suas propriedades já se incluem os famosos hotéis Conservatorium, em Amsterdam.

HÔTEL LUTETIA
45, boulevard Raspail – 75006, Paris

A TAP opera vôos para Paris via Lisboa, com menu assinado pelos chefs Vitor Sobral e Danio Braga. Pratos como o cordeiro assado com azeitonas e tomate seco e o badejo com pérolas de tapioca e gomos de maçã podem ser harmonizados com vinhos reunidos em uma carta exclusiva que inclui 15 rótulos portugueses, categorizados em brancos, tintos, roses, espumantes e do Porto.

Matéria publicada na revista The President em setembro de 2010.

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Hôtel Lutetia, Paris
Jornalista e consultora nas áreas de gastronomia e viagem, não recusa uma taça de um bom Syrah. Editora de Estilo da revista ISTOÉ Dinheiro, foi diretora de redação da revista WINE, crítica de restaurantes da revista Playboy, repórter e apresentadora na Rede Globo São Paulo e TV Cultura.
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